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Paulo Giardullo - Publicado em 12.08.2003

Ao ler Admirável Mundo Novo de Huxley e “1984” de George Orwell, fiquei com a impressão de que aquele aparato estatal de vigilância com a Grande Tela e o Grande Irmão, as torturas, a tensão constante num ambiente de delação, fazia referência mais especificamente aos regimes totalitários de esquerda ou de direita, enquanto os modos pseudo-democráticos de condução e massificação de Admirável Mundo Novo se identificavam categoricamente com a sociedade tecnológica, consumista e capitalista em
  Michel Foucault - O panóptico: Foucalt confirma Orwell
 


 

que vivemos. As brilhantes comparações de Aldous Huxley no prefácio do seu ensaio de 1958, Regresso ao Admirável Mundo Novo reforçaram esta idéia de que os elementos coercitivos de “1984” caracterizavam as ditaduras, inclusive a brasileira dos militares pós 64 e os elementos de manipulação, de condução sutil “como um gado” de AMN seriam características das “democracias” capitalistas ocidentais, portanto com analogia mais acentuada com a nossa realidade atual.

Porém, ao ler sobre o pensamento e a obra de Michel Foucalt, principalmente Vigiar e Punir (1975), venho a perceber que o “1984” de Orwell está muito mais presente em nossa vida atual do que eu pensava. Senão superando a presença indiscutível de Admirável Mundo Novo, pelo menos participando em pé de igualdade no que diz respeito ao controle social em nosso tempo. Em Vigiar e Punir, Foucalt trata com muita propriedade do tema da “Sociedade Disciplinar”, implantada a partir dos séculos XVII e XVIII, consistindo basicamente num sistema de controle social através da conjugação de várias técnicas de classificação, de seleção, de vigilância, de controle, que se ramificam pelas sociedades a partir de uma cadeia hierárquica vindo do poder central e se multiplicando numa rede de poderes interligados e capilares. O ser humano é selecionado e catalogado individualmente, não no sentido de valorizar suas particularidades que o fazem um ser único, “um mamífero com um grande cérebro”, como disse Huxley, mas para melhor controlá-lo. O sentido é dissecar o corpo social, transformar esta massa amorfa em micro seções individuais, para conhecer e controlar. O Poder nesse sentido é exercido de forma celular. Pois como diz Foucalt, “toda forma de saber produz poder”. Dividir, classificar, conhecer cada célula social para governar. O poder é então baseado na “Microfísica do Poder”, outra obra de Foucalt.

O filósofo aponta que a motivação de toda esta rede de controle se justifica pela necessidade que a burguesia teve de efetivar um controle mais determinado sobre as massas, que poderiam representar um perigo explosivo, se fossem levados a sério os ideais da Revolução Francesa e do Iluminismo. Seria como se fossem abertas as comportas de uma imensa represa, cujas águas foram mantidas estancadas a milênios desde a antigüidade remota, através dos mais variados mecanismos de poder, cuja argamassa da ignorância popular foi um dos elementos mais eficazes da sustentação desta barragem. Se deixassem essa imensa quantidade de água descer rio abaixo, livre com o conhecimento do Iluminismo, ela certamente inundaria e destruiria as luxuosas instalações do poder e sua corte finíssima, que hoje se traduz por burguesia. Era preciso consertar a velha barragem e parar essa força descomunal das massas ou então construir uma outra barragem e reservar o trinômio Liberdade, Igualdade e Fraternidade para os sócios do seleto clube burguês. Assim foi feito com a implantação da “Tecnologia das Disciplinas”.

E o que é mais interessante para nós, admiradores de Orwell: este “Poder das Sociedades Disciplinares”, se baseou, segundo Foucalt, no modelo do Panóptico de Jeremy Bentham (1748-1832), o filósofo utilitarista inglês que idealizou o sistema de prisão com disposição circular das celas individuais, dividas por paredes e com a parte frontal exposta à observação do Diretor por uma torre do alto, no centro, de forma que o Diretor “veria sem ser visto”. Isto permitiria um acompanhamento minucioso da conduta do detento, aluno, militar, doente ou louco, pelo Diretor, mantendo os observados num ambiente de incerteza sobre a presença concreta daquele. Essa incerteza resultaria em eficiência e economia no controle dos subalternos, pois tendo invadida a sua privacidade de modo alternado, furtivo, incerto, ele mesmo se vigiaria. Esse sistema permitiria também um controle externo do funcionamento do Panóptico, pois uma simples observação a partir da torre, permitiria a avaliação da qualidade da administração do Diretor, sendo ele também vigiado. Esta vigilância se espalhou de modo similar por toda a sociedade em uma rede ramificada além da estrutura física das instituições. Essa distribuição capilar do Poder é um dos pólos fundamentais de controle das massas, potencialmente perigosas à “Ordem”.

Ora, aí, no Panóptico estão explícitos os elementos essenciais de “1984”: a vigilância, o suspense de ser visto sem ver, as inspeções alternadas e incertas: “a qualquer momento a Polícia do Pensamento pode entrar e dar voz de prisão”, a qualquer momento o cidadão pode cometer o Crimidéia, qualquer um pode ser o delator, desde as próprias crianças até o amigo do boliche. A Grande Tela vigia, filma, invade a privacidade, ela é o próprio Panóptico elevado ao cubo, espalhado, inflado. Foucalt fala da impessoalidade do Diretor, ele pode estar na torre, pode não estar, é vedado ao observado saber se ele está ou não na torre, se o Diretor está ou não o observando. O observador não precisa necessariamente ser o Diretor, pode ser um amigo, seus familiares, um simples funcionário subalterno, pode nem haver ninguém. O Grande Irmão também não é impessoal? Na verdade uma abstração, uma personificação do Estado, ele pode ou não existir como pessoa física. Quantos boatos já se fizeram sobre a morte não divulgada de um líder poderoso e a suspeita de que o seu Império continuava de pé? Também há correspondência em relação à asfixia do drama vivido por Winston.

O texto de Foucalt é igualmente sufocante, tem-se uma primeira impressão de que não há saída possível. Dizem que há até uma discussão sobre a validade do caráter marxista-libertário da obra de Foucalt, tamanha a desesperança inicial quando se toma conhecimento da malha tão intrinsecamente montada do poder. Mas é claro que tem que se buscar uma saída, o que Foucalt aponta no decorrer de outras obras. Mas o certo é que Foucalt é uma confirmação do escritor de “1984”. Aquilo que George Orwell anteviu em 1948, em forma literária-alegórica, Foucalt detalhou, décadas depois, de forma teórico-filosófica. Isto nos traz uma correspondência maior ainda entre Aldous Huxley e Orwell. Por este prisma, há quase uma fusão entre “1984” e Admirável Mundo Novo. A vigilância coercitiva, sufocante, explícita e implícita da Grande Tela e do Grande Irmão com a massificação terrivelmente uniforme da “felicidade tecnológica” e do condicionamento Skenneriano de Brave New Word. Ora, em AMN também não havia um rígido controle de classificação, de catalogação dos fetos, das pessoas? Claro, apesar da alienação pelo condicionamento, imbecilização, drogas e tudo o mais, era necessário um rígido controle dos indivíduos (se é que podemos chamá-los assim) para se assegurar a homogeneidade. Por outro lado, em “1984” havia a coerção e a intimidação, mas havia também a propaganda e a sugestão estatais exercidas pela Grande Tela. “Lá fora faz um tempo confortável e a vigilância cuida do normal” (Zé Ramalho, Admirável Gado Novo). É a normalidade que buscam, tanto Mustaf Mond, o Coordenador Mundial de AMN, quanto o Grande Irmão.

Quem foi Jeremy Bentham?
Jeremy Bentham (1748-1832) foi um filósofo inglês, criador do utilitarismo filosófico. Nasceu em Londres, filho de um procurador do Estado. Destinado à carreira jurídica, Bentham realizou seus estudos em Oxford. Em 1802, elaborou o projeto para uma prisão-modelo denominado Panopticon. Dedicou-se especialmente a considerações no campo da ética e da jurisprudência, procurando introduzir modificações no sistema jurídico inglês e de outros países. Em 1824 fundou a Westminster Review, onde, junto a James Mill, iniciou um movimento que defendia a necessidade de elaboração de uma reforma constitucional para a Inglaterra. Esta reforma ocorreu, de fato, em 1832, ano em que Bentham faleceu. Alguns de seus principais escritos: Uma introdução aos princípios da moral e da Legislação, Penas e recompensas, Tratado das provas judiciárias, Deontologia.

Bentham desenvolve a elaboração do princípio de utilidade como fundamento para uma ética, baseada na observação factual da natureza humana. Este princípio enuncia que é próprio a todo homem basear suas ações na busca do prazer e na tentativa de evitar a dor. Para criar uma ética que não contrarie esta tendência natural, faz-se necessário relacioná-lo diretamente às noções de bem e mal. Deste modo, o homem pode compreender, pela via da razão, que a obediência a estas noções conduz à obtenção do maior prazer. É preciso estruturar as leis e normas éticas, a fim de permitir sua adequação ao princípio de utilidade, de maneira que todo homem possa apreendê-las racionalmente e segui-las em conformidade com suas aspirações naturais.

Este princípio, contudo, não vale somente para os indivíduos. No plano coletivo, ele é concebido como o princípio da maior felicidade do maior número. Este consiste em proporcionar o máximo prazer e o menor desprazer ao maior número possível de pessoas. Pode-se efetuar racionalmente uma análise do prazer. Para isso, é preciso verificar sua intensidade, duração, certeza, proximidade, fecundidade (capacidade de gerar novos prazeres), pureza (a menor possibilidade de que ele engendre dor) e extensão (o número de pessoas que ele abrange). Para que se possa normatizar a conduta, de modo que um indivíduo não cause desprazer a outro, existem as sanções, que procedem de diferentes instâncias, comportando, portanto, distintas naturezas: sanções físicas, que afetam o corpo; sanções sociais, provenientes das relações entre os indivíduos; sanções morais, que incidem sobre a opinião pública; sanções políticas e legais, aplicadas pelo sistema jurídico e administrativo; e as sanções religiosas.

É grande a influência que o pensamento de Bentham exerceu sobre os fundamentos do direito penal. Suas idéias pretendiam tornar a ética, especialmente através do cálculo dos prazeres e sanções, uma ciência rigorosa, a partir do modelo de rigor matemático.

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