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Integração
VI(22):163-4,2000

 

          A filosofia da ciência não se confunde com a teoria positivista ou neopositivista, para a qual só tem valor o conhecimento científico e o critério da significação de qualquer assertiva se reduz à possibilidade de sua verificação.

Newton Freire-Maia (1)

 

 

 

 

 

A universalidade dos princípios

A noção de que "tudo o que é científico apóia-se na experimentação" retrata o compromisso do cientista em mostrar-se fiel ao método científico. Por outro lado, apoiar-se na experimentação não implica, necessariamente, num bloqueio ao raciocínio intuitivo ou mesmo transcendental. Esta visão bloqueadora, própria dos empiristas ou dos positivistas dos séculos XIX e XX, não deve ser supervalorizada, em especial por aqueles que trafegam pelas fronteiras do conhecimento de sua época e, muito em especial, pelos cientistas teorizadores. É um erro pensar que novas idéias surgem graças exclusivamente à experimentação e, portanto, a se apoiarem, em seu nascedouro, nesta experimentação. Novas idéias, mesmo no campo das ciências, surgem através do livre pensar, sendo muitas vezes, e à primeira vista, absurdas. Tais proposições devem ser depuradas e é neste processo que poderão vir a ser refutadas, no caso de se mostrarem contrárias à experimentação. Resistindo a esta etapa, espera-se que venham a propor novas experiências (previsões de fenômenos ou fatos) para que ganhem credibilidade. Embora não se constitua uma regra, nada impede que uma idéia venha a ser aceita até mesmo quando não há experiência alguma a comprová-la. Inadmissível, a princípio, seria a aceitação de um conceito a contrastar com a existência de dados experimentais consistentes a falseá-lo.

A título de exemplo, aceita-se a afirmação milenar de que "os princípios fundamentais da ciência, são universais". Este sábio pensamento é inerente ao que tenho chamado por realismo transcendental (2). Poderíamos então dizer que os princípios fundamentais, observados aqui na Terra, seriam os mesmos tanto em Júpiter como em qualquer planeta de outros sistemas estelares ou galáxias distantes. Aceita-se também, quase como sendo um corolário desta regra, a imutabilidade temporal destes princípios fundamentais. Esta afirmação não se sujeita à falseabilidade, mas acomoda-se a uma generalização indutiva, a projetar para o futuro o caráter repetitivo de observações feitas em um passado recente. É como se garantíssemos que as experiências feitas hoje, mantidas as condições essenciais, irão se repetir daqui a, digamos, 10.000 anos, algo que aceitamos como um pré-requisito para que possamos continuar falando em ciência e/ou em método científico. Recentemente escrevi um artigo onde comento a importância da regra da repetitividade não apenas para a definição de ciência como também para que cheguemos à conceituação do método científico (3). Estou aqui apenas projetando esta regra para muito além de nossa existência temporal.

AristótelesA na universalidade dos princípios orientou os filósofos gregos na busca pelos princípios fundamentais; e a não observação desta universalidade, em certos casos consagrados, fomentou a teorização e/ou a procura por explicações outras a justificarem o motivo da regra estar "aparentemente" sendo contrariada. Aristóteles, por exemplo, ao notar que os corpos em movimento tendem para o repouso, deve ter estranhado que tal não acontecesse com os corpos celestes. Para Aristóteles, a tendência ao repouso representava um princípio natural verificado "experimentalmente" e a ser obedecido por todos os corpos. E por acreditar neste princípio bem como na sua universalidade, propôs a existência dos "motores divinos principais", como que a propelirem os astros em sua recusa a evoluírem para o repouso, o que seria, na sua maneira de ver, uma condição natural universal. Há ainda outra versão a dizer que, para Aristóteles, as orbes celestes teriam uma constituição qualitativamente diferente da nossa atmosfera e tais que o natural, nas condições lá vigentes, seria a evolução para um movimento circular (4), não havendo pois a necessidade da suposição da existência dos "motores divinos". Nota-se, de qualquer forma, a crença na universalidade dos princípios e leis e a tendência para a explicação de manifestações regionais diversificadas como resultantes da ação de fatores outros.

Seria este um argumento legítimo? Poderíamos hoje, após termos axiomatizado o método científico, dizer que tal conjectura seria uma heresia científica? Certamente não. Conjecturas como estas foram feitas por todos os cientistas que se situaram na vanguarda do conhecimento de seu tempo. No século XIX aceitou-se a existência de um éter imponderável a preencher o espaço vazio; no século XX foram incontáveis as tentativas em se superar dificuldades do mesmo tipo lançando-se mão também de conjecturas que não ficariam nada a dever aos "motores divinos principais" de Aristóteles. Dentre os inúmeros exemplos a respeito destacamos: o espaço-curvo, a dualidade partícula-onda, os fótons virtuais, os buracos negros, os táquions, o contínuo espaço-tempo, as partículas com energia "absoluta" negativa, a transformação matéria-energia etc. Ainda que não se possa citar nenhuma experiência a garantir a veracidade destes hipotéticos conceitos, a verdade é que todos eles foram firmados tendo por embasamento algum princípio fundamental apoiado na experimentação, tal e qual o "princípio da evolução para uma condição natural" aceito por Aristóteles.

GalileuQuase dois mil anos foram necessários para que alguém invertesse o questionamento de Aristóteles, inaugurando uma nova fase áurea na física. Para Aristóteles a dificuldade residia em explicar porque os corpos celestes permanecem em movimento quando o natural seria a evolução para o repouso, como observamos com os corpos terrestres. No século XVII Galileu, mantendo a universalidade dos princípios, simplesmente inverteu a questão: Porque os corpos terrestres evoluem para o repouso, quando o natural seria sua permanência em movimento, como acontece com os corpos celestes? O princípio que agora está entrando em cena e a substituir "o princípio da evolução natural para o repouso" nada mais é do que a lei da inércia, um dos pilares da física de Newton. Tanto os corpos celestes quanto os terrestres estariam sujeitos à mesma inércia, até então suposta como uma "inércia circular". Em virtude do atrito, contra o solo e/ou contra a atmosfera, os corpos terrestres evoluiriam gradativamente para o repouso. Não havendo atrito, o natural, segundo a visão de Galileu, seria a manutenção do movimento.

A "experiência" inicial ou primeira, a justificar os dois princípios contraditórios (a inércia circular e universal, de Galileu, e a evolução para uma condição natural, de Aristóteles, em que o natural seria uma propriedade regional ou local) é exatamente a mesma, ou seja, a observação do comportamento dos corpos terrestres e celestes. Vejam a intuição e a lógica transcendental em ação! Muitas das experiências de Galileu foram guiadas pelo raciocínio intuitivo seguido da depuração racional, a culminarem na experimentação. Com efeito, conquanto Galileu tenha feito inúmeras experiências, ele foi um físico eminentemente teorizador a se utilizar das experiências para comprovar hipóteses racionalmente concebidas (previsão de fatos e/ou de fenômenos), argumento esse que nem sempre é enfatizado convenientemente nas escolas. Graças a esta notável virtude intuitiva, ainda quando estudante chegou a ser considerado, por seus mestres, "um desequilibrado malabarista de números inúteis".

A.M.F


Referências:

(1) FREIRE-MAIA, N., 1995: A Ciência por Dentro, Editora Vozes, Petrópolis, p.33. Voltar

(2) MESQUITA FILHO, A., 1993: Eletromagnetismo e Relatividade, capítulo V do Livro A Equação do Elétron e o Eletromagnetismo, Editora Ateniense, São Paulo. Voltar

(3) MESQUITA FILHO, A., 1996: Teoria sobre o método científico, Integração II(7):255-62, 1996. Regra da repetitividade: "Se em dadas condições um determinado fenômeno, sempre que pesquisado, se repetiu, é de se admitir que em futuras verificações o mesmo suceda." Voltar

(4) The Physical Sciences, em The New Encyclopaedia Britannica, Vol 25, Chicago, 1993, p.829. Voltar

 

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