17/07/07 - ANO I - EDIÇÃO 44

Artigo

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Teorias nas Ciências Sociais, texto de Rubem Alves

por Rubem Alves

Nas ciências sociais há um sem-número de redes. Aqui existe pouco acordo acerca dos peixes a serem pescados, das redes a serem empregadas e dos métodos-arapucas a serem armados.

Cientistas das chamadas ciências exatas freqüentemente se riem dos seus companheiros das ciências humanas e chegam mesmo a perguntar se tais ciências são mesmo ciências.

A questão, entretanto, está mal colocada.

O rigor das ciências da natureza não se deve, em absoluto, a que elas sejam mais rigorosas e seus métodos mais precisos.

Acontece que o bicho com que elas lidam é muito doméstico, manso, destituído de imaginação, faz sempre as mesmas coisas, numa rotina enlouquecedora freqüenta os mesmos lugares. Tanto assim que é possível prever onde estarão Terra, Sol e Lua daqui a 100 000 anos. Se eu lhe desse duas tarefas:

1. Desenhe os movimentos de uma árvore.

2. Desenhe os movimentos de uma bailarina, dançando balé.

Qual dos dois desenhos seria mais preciso?

Evidentemente o da árvore.

Por quê? Porque você possui métodos mais rigorosos para lidar com a árvore? Não. Porque a árvore não sai do lugar, não muda de idéia.

 Você pode anotar: o rigor de uma ciência é diretamente proporcional à rotina do objeto.

Rotina? Isto mesmo.

Num linguajar mais sofisticado: leis.

Leis são enunciados da rotina, da falta de imaginação, da monotonia, do eterno retorno, da igualdade, dos objetos.

Mas também as ciências do homem buscam regularidades e monotonias. Um objeto que fosse novo a cada instante seria absolutamente incognoscível.

Todos somos monótonos: o comportamento ocorre em cima de leis, da mesma forma como a aranha anda sobre sua teia.

Freqüentemente se diz das pessoas extremamente monótonas que elas têm caráter. Caráter vem de um verbo grego (charasso) que significa gravar. "Charakter" significa um gravador, um instrumento para gravar, uma coisa impressa ou gravada. Em outras palavras: algo fixo, sem vida previsível.

De fato, as pessoas de caráter são totalmente previsíveis.

Uma árvore tem mais caráter que uma bailarina.

Uma pedra tem mais caráter que a árvore.

Digamos que, na natureza, todos são soldados em ordem unida e que nunca erram o passo. As leis são absolutas. Não há exceções.

À medida que a realidade vai se tornando mais complexa, à medida que emergimos do mundo físico-químico para o mundo da vida, das amebas, das borboletas, e daí para o mundo das canções, poemas, linguagem, arte, religião, revoluções, o rufar dos tambores da ordem unida fica quase inaudível, porque tudo parece diferente.

As coisas fixas, marcadas pelo caráter e pela lei, são deslocadas por um comportamento caleidoscópico, num mundo em que cada pessoa parece diferente da outra.

É isto que torna tão difícil fazer uma ciência rigorosa do mundo humano. O problema não está nem nas teorias, nem nos métodos. O problema está na própria natureza do objeto.

Mas, a despeito disto, a ciência tem a ver com a busca da ordem unida, da regularidade, dos hábitos da caça. Ela não se interessa pela diferença mas pelo comum.

A lei é o comum. Por ser o comum é também o universal.

Aqui você já pode perceber uma curiosa característica das redes usadas pelas ciências humanas. Se o que lhes interessa é o que é comum e universal acerca do homem, suas malhas têm de ser largas o bastante para não prender nelas nenhum indivíduo.

Um indivíduo é um ser único. Sobre ele não se pode fazer ciência. Mas o fato é que todos os indivíduos se encontram localizados em certas entidades sociais, que são sociais exatamente por serem comuns e universais. Por exemplo:

• Cada um tem um papel. Você já notou como uma jovem mãe, de zona rural, ao ter seu primeiro filho, assume um comportamento típico? Um pé à frente do outro, para permitir o gingado oscilante do corpo, enquanto joelhos e braços funcionam como molas, para adormecer o bebezinho? Este comportamento faz parte do papel de mãe, tal como definido em certas regiões. Assumimos papéis de pais, mães, crentes piedosos, professores, cientistas, escritores, guardas de tráfego. O papel se deriva do script que a sociedade nos dá, de acordo com as coisas que temos de fazer.

• Estamos dentro de um classe social, somos obrigados a falar uma certa linguagem, habitamos o mundo do trabalho, participamos do jogo econômico na medida em que ganhamos e gastamos dinheiro... Todas estas palavras que usamos indicam complicadas coreografias: existe ordem, é bem verdade, mas é muito complicado prever o próximo passo da bailarina.

• Nas ciências da natureza, tudo é tão dominado pela rotina que tudo é previsível. Assim, com o auxílio das ciências da natureza o cientista se transforma num profeta. Na verdade, neste campo uma teoria se confirma por seus poderes para predizer o futuro.

Nas ciências humanas, como no balé, é impossível prever o próximo passo. Mas, uma vez dado, a gente percebe que ele se integra perfeitamente no estilo da música. Parece que, aqui, a gente só pode ser sábio depois que as coisas acontecem...

De fato, quem se move em meio às coisas humanas está proibido de ter as certezas e – por que não dizer? – a arrogância que se encontra em muitos cientistas da natureza, equivocadamente orgulhosos de seu poder para prever o próximo passo da tropa em ordem unida. Você compreende que é mais fácil montar uma armadilha para uma tropa em ordem unida que para um bailarino?...

Usando uma linguagem filosófica, poderíamos dizer que no mundo humano se encontra esta coisa que ninguém sabe bem o que é e que se chama liberdade... e é isto que torna o rigor tão problemático.

Você compreenderá, seguindo um caminho mental inverso, que quanto mais cientificamente planejada for uma sociedade, tanto mais previsível e cognoscível ela será. Tanto mais próxima da ordem unida, da rotina, do caráter, do determinismo...

As teorias me dão informações sobre os hábitos comportamentais de certas classes, tipos de entidades.

Veja uma coisa curiosa:

No campo da física e da química os tipos se identificam com os indivíduos. Assim:

• Ácido sulfúrico é sempre ácido sulfúrico, seja aqui, seja na China, seja puro, seja misturado na água. Não existe um ácido sulfúrico diferente. Se for diferente, terá um nome diferente.

• A luz, não importa onde ela se encontre, é sempre luz, sempre brinca de onda, sempre brinca de partícula.

• É esta uniformidade que torna muito fácil a tarefa dos cozinheiros, nesta área. Cientistas são, de certa forma, cozinheiros. Artigos científicos são receitas. E quando um pesquisador resolve testar a receita do outro para ver se as coisas se dão do jeito como são relatadas, ele está se comportando como uma cozinheira que experimenta uma receita nova. Se a receita não dá certo, entretanto ele nunca pode alegar, como o fazem as cozinheiras, que a farinha não estava boa ou que as claras não foram batidas. Porque, nas ciências chamadas exatas, os ingredientes têm qualidade e uniformidade garantida. Não é que a ciência seja exata. O que ocorre é que não há variações.

No campo da biologia, as coisas se complicam um pouco:

• Samambaias são as mesmas, em qualquer parte do mundo, mas há samambaias viçosas e "tristes"...

• Cães são cães em qualquer parte do mundo, mas enquanto alguns são amigos, outros são ferozes...

• E os homens? De forma idêntica são homens em todos os lugares. Mas quão diferentes são suas manifestações: música, guerra, ternura, sadismo...

Estamos perante a possibilidade de variações.

Nas ciências físicas só existe anormalidade. Não se observam casos de um raio de luz, um átomo, um ácido, enfermos. Quando surge a vida, entretanto, aprece que a natureza começa a brincar de compor. Na verdade ela já compunha antes, mas suas melodias se pareciam com o "samba de uma nota só".

Ao nível humano as coisas se tornam mais fantásticas ainda. E isto porque temos a capacidade de inventar temas novos, que nem mesmo a natureza chegou a sugerir. O mundo humano, por isto mesmo, não é parte da natureza, da mesma forma como a nossa roupa não é um prolongamento natural d pele. O mundo da cultura é uma invenção. E dentro dele os indivíduos adquirem a máxima variação. E a variação é tão grande que eles podem mesmo se decidir a ser diferentes do que são.

Isto não ocorre no nível biológico. Não há casos de revoluções entre colônias de samambaias, decididas a se transformarem em roseiras. Nem casos de girassóis que tivessem cometido suicídio. Os indivíduos, ao contrário, se caracterizam por este fato trágico e grandiosos: sua decisão de serem diferentes do que são. Isto os torna dolorosamente e maravilhosamente particulares neuróticos e sofredores capazes de criar a arte, de amar, de se sacrificar, de fazerem revoluções e se entregarem às causas mais loucas, de cometerem suicídio.

Mas são estas variações, entretanto, que jazem fora do campo da ciência. Porque a ciência, em sua busca de leis e uniformidades só pode lidar com tipos. É verdade que eu posso ter hábitos comportamentais muito meus.

Mas, querendo ou não, pertenço à classe dos homens de meia-idade, ao tipo dos professores, à prateleira dos intelectuais classe média; e estes fatores permitem que eu seja incluído dentro de regularidades comuns e mim e a muitos outros que habitam os mesmos compartimentos.

Estamos aqui frente à teia sobre a qual o bailarino pode dançar.

Mas, quaisquer que sejam os seus saltos, o cientista sabe que seus pés nunca se desviarão dos fios, as leis do mundo em que ele se encontra.

É isto o que faz a teoria, para qualquer cientista, das "exatas" ás "inexatas": ela diz dos hábitos comportamentais da classe. A partir daí fica fácil preparar as armadilhas, manipular, controlar...

ATENÇÃO: note a relação entre conhecimento e controle. Aqui se encontra o potencial político da ciência. Preparamos armadilhas não apenas para entidades físico-químicas, como também para pessoas.

Rubem Alves é Bacharel e Mestre em Teologia, Doutor em Filosofia (Ph.D.) pelo Seminário Teológico de Princeton (EUA) e psicanalista, escreveu livros e artigos abordando temas religiosos, educacionais e existenciais, além de uma série de livros infantis.

 

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