Antero Abreu

"A vós / À vossa Dor, / - como o eco que se polongra / E se escuta / Eu dou os versos que faço, / Como quem dá um abraço."


Biografia

Poemas:

Biografia

Nasceu em 1927 na cidade de Luanda, onde fez o liceu. Freqüentou Direito, em Coimbra, vinda a acabar o curso em Lisboa. Advogado em Luanda durante vinte anos, após a independência de Angola ingressou na magistratura do Ministério Público. Dirigente do Cineclube de Luanda.

Obra poética:

A Tua Voz Angola, 1978, Luanda, União dos Escritores Angolanos;

Permanência, 1978, Lisboa, Edições 70;

Poesia Intermitente, 1987, Lisboa, Edições 70.


Uma canção de primavera

Nesta flor sem fruto que aspiramos
Eu vejo coisas que ninguém descobre:
Vejo a raiz, o caule, os ramos,
Vejo até o sulfato de cobre.

E vejo coisas que ninguém mais vê:
Vejo a flor a desenhar-se em fruto
E quer ela o dê ou o não dê
É esse o fim por que luto.

		(Permanência)

Libertação

Das mentiras loucas que me envolvem
Vou quebrando os liames um a um
E da angústia da libertação
Nascerá um dia a paz
Do ser e do não ser.

Das mentiras vãs que me amordaçam
Os véus arrancarei a um e um
Tristes despojos dum passado velho
Que em mim se quis perpetuar.

E deixarei um rasto de desilusões;
Um caminho de lágrimas choradas;
Um pouco do que fui em cada dia.

Mas ficarei seguro e afirmado,
Com a serenidade dum Buda na floresta,
Com a nudez dum Cristo no redil.

			(Permanência)

"Aqui não há esperança"

Aqui não há esperança
Aqui é tudo espesso igual e morno
Até onde a vista alcança
Ó sombras do caminho
Nada se define em torno
Aqui tudo são brumas
Movediço e ilusório
O que se vê são sombras não as árvores
São imagens não as coisas
E as estrelas após tantos mistérios
Ainda são almas em sonhos merencórios
Tudo aqui é uniforme. Onde se apalpa
Sente-se o decompor dos corpos mortos
E a cada passo - uma barreira
E a cada luz - um véu de trevas
E em cada bússola os ponteiros tortos
Na luta somos desiguais
No amor somos mentiras
Na vida somos estéreis
Se temos coração
É para o rasgarmos dia a dia em tiras
(Ó lobos dos caminhos
Fauces de angústia em ânsias de apetite
Comei-nos a boca e os braços
Imolai-nos de vez à vossa fome
E uivai depois felizes aos espaços)
Aqui tudo é dúbio e vacilante
Num chão de trincheiras os espectros
Andam fugindo de ódios que os corroem
Claras bandeiras de matizes claros
Refugiam-se nas sombras por que doem
Tudo aqui se amortalha nos mistérios
Borbotões de vida que cessaram
Dão passo à serenidade
Caiada e estéril dos cemitérios
Tudo o que se come tem sabor a mastigado
Tudo o que se ouve é como já ouvido
O presente é um fruto descascado
E o futuro é um canto repetido
Andam os répteis a banhar-se em luz
Andam morcegos a comer os fogos
Aninham-se sapos em doçuras moles
E andam as almas a acalentar malogros
(Lobos dos pinhais de fauces tenebrosas
Vinde roer-nos o olhar e a mão
Vinde matar-nos e uivar contentes
À serenidade do tempo na amplidão)
Tudo aqui é derrota sem batalhas
Tudo aqui é um rugir de reses
Tudo aqui são pálidas mortalhas
A fingir de cotas e a fingir de arneses
Andam flores a desabrochar para quê?
Para que andam aves a voar no vale?
Para que andam trigos a doirar ao sol?
Para que brilha na parede a cal?
Sonhos de sonhos a subir alados
Tremulas mãos a tatear os pomos
E enforcados
Secam na árvore os apetecidos gomos
Deitam-se as redes mas o mar é sóbrio
Olha-se a lua mas a lua é morta
Cravam-se os cravos mas o casco é inútil
Bate-se a aldrava mas não se abre a porta
Tudo aqui é tranqüilo como os mortos
Tudo aqui é sonâmbulo e vencido
Tudo aqui é cavo como um sorvo
Imóvel como um olhar estarrecido
(Ó lobos dos caminhos
Que a fauce negra entreabris lasciva
Vinde seguros acabar conosco
E uivar alegres à eternidade altiva)
E não nos dêem uma alma
Para que sobreviva.

		(Permanência)