O curto verão de uma teoria do século 20
Economistas esqueceram da história e do alerta de Keynes sobre os
riscos da expansão desenfreada do mercado mundial. Obra de Keynes revela o que
Hegel chamou de 'consciência infeliz'
ROBERT
KURZ
John Maynard Keynes (1883-1946) foi talvez um dos
homens mais interessantes do século 20. Como especialista da teoria do valor e
da moeda, ele desfrutou de eminente reputação já desde a Primeira Guerra
Mundial. Mas seus interesses eram muito mais vastos. Matemático nato, primeiro
granjeou fama internacional com seu ''Tratado Sobre a Probabilidade'' (1921).
Seu verdadeiro amor, porém, era a filosofia. Mas não lhe foi dado exercer
funções acadêmicas nessa área em Cambridge, como esperava. Embrenhou-se na
política, foi enviado como funcionário da Coroa Britânica à Índia e obteve
sucesso também como economista no Tesouro e na Bolsa. Seu patrimônio lhe
emprestava a independência financeira; promotor das artes, foi também um grande
colecionador. Arrematou o espólio de Isaac Newton, tornou-o acessível à pesquisa
e chegou mesmo a publicar sobre o assunto.
Essa amplitude do horizonte
intelectual não se deixava capturar nos estreitos limites de uma disciplina
acadêmica. À semelhança de Marx, encontramos a cada passo nos escritos de Keynes
reflexões interdisciplinares nas quais ressurge a unidade entre filosofia,
política e economia. E, no entanto, o economista Keynes, como ele próprio
afirmava, jamais transgrediu as fronteiras de sua tradicional especialidade ou
do renome acadêmico de sua instituição. De certa maneira, sua obra teórica
contém um elemento daquilo que o filósofo Hegel denominou ''consciência
infeliz''.
Também sua vida pessoal é marcada por certos laivos desse
infortúnio. O ilustre graduado por Eton movia-se nos mais altos círculos da
sociedade oficial, mas desposou a dançarina russa Lydia Lopokova (e
interessou-se ainda mais, desde então, pela história do teatro e do balé). Sua
índole foi impregnada por fortes inclinações homossexuais, como correm os
boatos. Talvez John Keynes tenha sido uma águia encerrada numa gaiola de ouro. E
talvez sua infelicidade fosse não poder ser o outsider rebelde de seus
sonhos.
Esse elemento de ''consciência infeliz'' comparece também em sua
principal obra, publicada em 1936 (''Teoria Geral do Emprego, do Juro e da
Moeda''), considerada mais tarde como o estopim da ''revolução keynesiana'' na
teoria econômica. Até essa data, vigorava na disciplina acadêmica o indisputado
teorema formulado por Jean-Baptiste Say (1767-1832), segundo o qual toda oferta
cria automaticamente sua própria demanda e o equilíbrio do mercado, em
princípio, pode ser alcançado pela ação do próprio mercado. Say sistematizou
assim uma idéia fundamental, que já era verificada nos economistas clássicos
Adam Smith e David Ricardo. De acordo com tal concepção, disfunções no mercado,
crises e desemprego são sempre resultado de ''causas extra-econômicas''.
Responsáveis para tanto são as guerras, a política e ''last but not least'' os
sindicatos, que supostamente adulteram o processo ''natural'' do
mercado.
Keynes foi o primeiro economista sério a pôr em questão os
fundamentos deste teorema. Mas não foi o primeiro teórico a fazê-lo; há quase um
século, Karl Marx, o ''enfant terrible'' da ciência moderna, já explicara as
crises não por ''causas extra-econômicas'', mas pelas próprias leis do modo de
produção capitalista. Marx, porém, não era tido como sério; sua teoria não teve
acesso ao panteão oficial e, como notou Keynes, foi proscrita a um ''mundo
inferior'' por força da ciência acadêmica. Assim, Keynes assumiu a melancólica
tarefa de formular a crítica a Say já desenvolvida há tempos por um outsider e
introduzi-la no seio do estudo universitário. A ''revolução keynesiana'' não foi
uma revolução contra a teoria dominante, mas sim o paradoxo de uma revolução do
próprio establishment científico.
A fama de Keynes é impensável sem a grande
crise econômica mundial de 1929-33. Esse terremoto econômico abalou tão
profundamente a sociedade moderna, que os próprios fundamentos básicos da
economia clássica vacilaram. A ''Teoria Geral'' de Keynes pode ser compreendida
como a resposta da ciência acadêmica à crise econômica mundial. Keynes provou
que o teorema de Say só representa um caso específico e não pode reivindicar
validade universal. Um equilíbrio relativo do mercado é possível também a níveis
baixos e com a difusão em larga escala do subemprego. Em outras palavras, o
próprio mercado pode levar a uma situação em que não haja demanda suficiente por
bens de consumo e investimentos, de modo a fazer com que uma boa parcela da
oferta social da força de trabalho não encontre demanda alguma,
independentemente das manobras sindicais.
Ao contrário de Marx, Keynes não
reconheceu nesse fato os limites da economia moderna. Ele considerava possível
superar a deficiência na demanda. Isso não ocorreria, no entanto, por meio de
simples decisões microeconômicas dos indivíduos e das empresas, mas sobretudo
com auxílio de medidas macroeconômicas aplicadas à circulação econômica como um
todo. Keynes salientou, com isso, o significado preponderante da macroeconomia
negligenciado pelos clássicos.
Baseou-se para tanto no conceito de ''demanda
agregada'' (o conjunto de gastos dos consumidores, investidores e do poder
público), cuja maximização na economia inglesa já era designada antes de Keynes
como ''Welfare Economics''. Keynes, todavia, de forma mais enérgica que seus
precursores, desligou tal conceito de uma simples adição de ''demandas
individuais''. Desde Keynes, a ''Welfare Economics'' adquiriu um significado
inteiramente novo, fundado em bases macroeconômicas.
Como a maioria dos
socialistas, Keynes quis também mobilizar o Estado como uma espécie de deus ex
machina, a fim de controlar a crise econômica. À diferença do socialismo, não
caberia ao Estado assumir o papel de ''empresário global'', mas sim exercer a
simples função de estimular a demanda carente por intermédio de medidas
macroeconômicas. Com um aumento na quantidade de moeda, com a repartição de
rendas e com investimentos públicos suplementares, o Estado seria capaz de
atingir tal objetivo. Para que os investimentos públicos adicionais não resultem
num jogo econômico de soma zero, diz Keynes, eles não devem ser financiados por
impostos suplementares, pois desse modo o aumento da demanda pública só se daria
pelo fato de estrangular a demanda privada. O Estado teria assim de financiar
seus investimentos adicionais por via do ''deficit spending'' (gasto
deficitário), ou seja, contraindo empréstimos e intensificando o trabalho das
prensas na Casa da Moeda.
Keynes preconizou medidas estatais tidas até então
como levianas e perigosas. Mas para tanto pôde basear-se numa prática econômica
que se tornara regra após a Primeira Guerra Mundial. A ''Welfare Economics''
manteve desde o início uma estreita relação com a ''Warfare Economics'', a
economia de guerra. O denominador comum era o ''deficit spending''.
Desde os
primórdios da era moderna, muitos Estados endividaram-se em tempos de guerra,
uma vez que as receitas regulares arrecadadas com impostos não eram suficientes.
Na Primeira Grande Guerra, porém, essa prática ganhou novos contornos, pois os
custos com a administração industrial da guerra excederam todas as dimensões até
então conhecidas. Na época, ainda se acreditava que o enorme endividamento
estatal era um fenômeno passageiro da guerra. Sob o influxo da crise econômica
mundial, contudo, Keynes sugeriu implementar o ''deficit spending'' para tomar
as rédeas da economia civil. Chegou mesmo a propor ao Estado em crise, caso
fosse necessário, ''construir pirâmides'' ou ''cavar buracos e tapá-los
novamente'', a fim de suscitar uma demanda adicional. Involuntariamente, provou
assim que a economia moderna tem o caráter de um absurdo fim em si mesmo. O
consumo insensato e destrutivo de recursos nas indústrias militares da morte
repete-se na economia civil, com o único propósito de alimentar a cega dinâmica
monetária. Dessa perspectiva, mais uma vez, a teoria de Keynes revela uma
''consciência infeliz''.
O destino histórico da ''revolução keynesiana'' foi
extremamente singular. Tanto a prática econômica do ''New Deal'' do presidente
norte-americano Roosevelt quanto a da ditadura fascista na Alemanha (respostas,
uma e outra, à crise econômica mundial) indicam uma certa semelhança com as
idéias de Keynes. Mas tais práticas surgiram de forma espontânea e pragmática e,
em todo caso, não foram legitimadas pela ''Teoria Geral''.
Após a Segunda
Guerra Mundial, grande parte da nova geração de economistas foi influenciada por
Keynes. Em contrapartida, a antiga geração, que ainda ocupava a maioria das
cadeiras acadêmicas, aferrava-se com empenho à teoria clássica. Nesse meio
tempo, contudo, os próprios paladinos dos clássicos reagiram à crise econômica
mundial, se bem que de forma diametralmente oposta a Keynes. O economista alemão
Walter Eucken (1891-1950) reduziu a crise ao fato de a concorrência dos agentes
econômicos não estar suficientemente assegurada e o mercado poder conduzir, por
si mesmo, a monopólios. Em seu argumento, defendia a intervenção do Estado, mas
não através do ''deficit spending'' no plano macroeconômico, como em Keynes, e
sim através de uma ''política de ordenação'' institucional, cuja tarefa era
garantir a livre concorrência. Essa escola foi chamada
''neoliberalismo''.
Nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, os
neoliberais ganharam ascendência sobre os keynesianos. E o inesperado boom dos
anos 50 e 60, em especial o ''milagre econômico'' alemão, parecia depor contra
Keynes. O ministro da economia alemão Ludwig Erhard, uma figura simbólica da
prosperidade do período, declarou-se partidário da doutrina neoliberal. Mas a
prosperidade não tinha sua causa numa concorrência mais livre do que antes, mas
no desenvolvimento estrutural das indústrias (produção de automóveis,
geladeiras, lavadoras, televisores etc.), que desencadeou uma enorme demanda em
todos os níveis (emprego, consumo, investimento). Além disso, tal evolução foi
posta em movimento (pelo menos indiretamente) por iniciativa estatal. O tiro de
largada foi dado justamente pela ''Warfare Economics'' da Guerra da Coréia, no
início dos anos 50; desde então, os EUA, como polícia mundial, aperfeiçoaram uma
''economia permanente de guerra'', mantida à custa de um contínuo ''deficit
spending''.
Mas os tempos do ''milagre econômico'' foram apenas um curto
verão siberiano da história do pós-guerra. Já nos anos 60, as taxas de
crescimento decaíram novamente; na década de 70, o mundo foi rondado pelo
espectro de 1929. Parecia ter chegado a hora do keynesianismo, sobretudo porque
nesse meio tempo os jovens economistas dos anos 40 ascenderam a posições de
destaque. Nos maiores países ocidentais, em especial nos EUA, na Inglaterra e na
Alemanha, teve início uma era de política econômica keynesiana. O ''deficit
spending'' foi implantado em grande escala como o marcapasso do capitalismo. A
maioria dos planos de desenvolvimento do Terceiro Mundo também sofreu a
influência de Keynes.
Deve-se dizer, infelizmente, que o verão do
keynesianismo foi ainda mais curto que a era de prosperidade neoliberal. O
próprio Keynes acreditou que o ''deficit spending'' pudesse restringir-se a uma
espécie de impulso inicial para a dinâmica interna do mercado. Mas logo
tornou-se evidente que o coração do mercado não era capaz de pulsar sem
marcapasso. O resultado foi uma inflação meteórica e uma crise generalizada das
finanças estatais. Com essa nova crise, no início dos anos 80, o keynesianismo
foi definitivamente sepultado. Confirmou-se assim sua ''consciência infeliz'':
para a crise econômica mundial, chegara muito tarde; na prosperidade após 1950,
não foi utilizado; quando finalmente se tornaria o ''príncipe encantado'' da
economia, já estava envelhecido.
Qual foi o erro? Keynes, assim como seus
rivais neoclássicos ou neoliberais, não entendia a economia moderna como um
processo histórico (irreversível), mas como a forma de existência de categorias
econômicas atemporais.
Isso é surpreendente, pois já num ensaio de 1930 ele
foi um dos primeiros a referir-se ao conceito de ''desemprego estrutural'',
prevendo que ''nossa descoberta de meios para economizar trabalho progride mais
rápido do que nossa capacidade de encontrar novos empregos para a
mão-de-obra''.
Mas, porque acreditava que esse estágio seria atingido somente
dali a um século, ele não seguiu o fio de seu pensamento. Na ''Teoria Geral'', o
que está em jogo não é o verdadeiro desenvolvimento estrutural do capitalismo,
mas sim a intemporal ''psicologia dos agentes econômicos'' e sua possível
aplicação aos sistemas econômicos temporais. O keynesianismo dos anos 70 não
fracassou nesse último plano em virtude de uma política econômica
''equivocada'', mas sim pelo de fato de que as indústrias responsáveis pela
evolução histórica estavam estruturalmente esgotadas após a Segunda Guerra
Mundial.
Desde a década de 80, a revolução microeletrônica tem avançado nos
limites da economia moderna profetizados por Keynes em 1930 (embora sua
avaliação fosse naturalmente imprecisa). Eis por que sua própria teoria perdeu a
razão de ser. Isso vale também para as medidas político-econômicas por ele
propostas, as quais pressupõem economias nacionais relativamente
fechadas.
Keynes tinha plena consciência disso e logo fez notar os riscos de
uma expansão desenfreada do mercado mundial. Ora, desde o fim do keynesianismo
os economistas padecem de uma perda de memória coletiva. Em vez de admitir os
limites do sistema econômico moderno, eles elaboraram o neoliberalismo e
voltaram a falar da teoria clássica há muito refutada, como se a crise econômica
mundial e percalços dos anos 70 jamais tivessem ocorrido. Mas quem simplesmente
se esquece da história em vez de superá-la criticamente está condenado a
senti-la na pele mais uma vez.
S. Paulo 21/04/96