Grande Entrevista Exclusiva com Paul Krugman

«Keynes é ainda mais importante hoje
do que há 50 anos»

Jorge Nascimento Rodrigues, com o apoio de Hélder Martins (jornalista do Expresso), falou com o actual economista
mais mediático do MIT em plena crise asiática de 1998

A vingança serviu-se a frio quatro anos depois. O economista do Massachusetts Institute of Technology que anteviu sinais de crise no continente tido como o mais promissor deste final de século, quando toda a gente falava do 'milagre asiático' e do 'século da Ásia', acabou por ter razão contra a cegueira da maioria.

A revista de negócios mais influente do mundo, a «Fortune», apostou nele desde cedo e passou a mimosear-nos periodicamente com uma coluna humoristicamente intitulada 'Não há borlas'. Depois, catapultou-o para capa no auge da crise asiática, em Setembro passado, fazendo história com um artigo deste académico norte-americano advogando uma terapia contrária à do Fundo Monetário Internacional e colocando em choque a comunidade 'liberal' da alta finança.

Apontamento pessoal

Tenho 'perseguido' o homem desde 1993. Os seus artigos simples e directos, sem intelectualice barata, escritos para ignorantes como eu,logo me cativaram. Começei, então, a ler os livros dele, como se vê tardiamente.
Um dos seus artigos 'malditos' fez-me como um 'clique' e colocou em questão uns cinco anos de 'fé' no modelo asiático, alimentada por algumas reportagens no Sol Nascente e nos «tigres». O que eu tinha visto era a superfície do Pacífico; ele ajudou-me a ver o fundo.
Os artigos que, então (em 1994 e 1995), escrevi no Expresso alimentaram alguma bílis de alguns académicos e leitores. Por 'sorte', o tema viria a bater certo e Paul Krugman tornou-se no homem do momento e eu tornei a tirá-lo da cartola ... apesar da interrogação persistir - «quem é esse tipo, mesmo? Paul quê?» - para alguns aficionados do jornalismo 'económico' e considerados 'opinion makers' da vida doméstica.
Pela terceira vez, fui bater-lhe à porta, e ouvir em directo as explicações do economista do MIT que não quer ser guru.

J.N.R.

A história de Paul Krugman como economista mediático começou em 1994. «O Mito do Milagre da Ásia» foi um artigo «escrito por acaso» numa revista política de élite. Os analistas económicos ocidentais pouco liam a revista em causa - a «Foreign Affairs» -, e o artiguito passou despercebido naquele final de ano.

Na Ásia, contudo, foi como um tufão - os políticos e os economistas, sobretudo os mais 'asiatistas', defensores da orginalidade dos valores que teriam gerado o 'milagre asiático', vieram a terreiro insultar este 'gringo' que tinha o desplante de condenar mais de uma vintena de anos de crescimento a um fenómeno com os dias contados, em virtude de «problemas estruturais do modelo». Os ouvidos dos responsáveis orientais e ocidentais continuaram solenemente moucos até que na Ásia começou o dominó das crises «tigre» a «tigre».

Foi com este desmancha-prazeres da Academia, um tipo barbudo e geralmente sem gravata, tido como 'economicamente incorrecto', que estivemos recentemente, procurando clarificar alguns dos seus pontos de vista mais polémicos.




Escrito quase por acaso

Paul Krugman Quando escreveu «O Mito do Milagre da Ásia» há quatro anos atrás, alguma vez pensou que a economia lhe viria a dar razão de uma forma tão estrondosa?

PAUL KRUGMAN - A verdade é que eu escrevi essa peça para a «Foreign Affairs» quase por acaso. Aconteceu que eu tinha lido os resultados de alguma investigação económica muito interessante e contrária às teses dominantes, e pensei com os meus botões que tinha graça - e era meu dever intelectual - divulgar o que tinha encontrado para um público mais vasto. Não esperava, sinceramente, uma reacção tão negativa como a que o artigo teve em 1994 e 1995, com gente irritada com o desmanchar do mito do milagre asiático. E, também, lhe digo, que não esperava mesmo, não tinha qualquer ideia do tipo de catástrofe que viria três a quatro anos depois e me tornaria quase que um profeta... da desgraça.

E quem é que deve ser 'culpado' dessa desgraça? O diabo em forma de especuladores globais? O Fundo Monetário Internacional que só lança lenha para a fogueira, segundo os críticos asiáticos? Ou os fundamentos do tal modelo asiático dos 'tigres'?

P.K. - Se calhar, um bocadinho de cada coisa, não? Mas, tendo em conta a forma como a crise alastrou, eu penso que o principal problema está na aparente instabilidade «congénita» das pequenas economias face a fluxos enormissimos de capitais. Não é que haja um vilão necessariamente. O problema é que há economias que são mais vulneráveis ao pânico que pode ser gerado por acontecimentos totalmente fortuitos, que tornam 'imperfeições' económicas absolutamente geríveis em fraquezas catastróficas.

É curioso que um dos principais advogados do 'comércio livre', o professor Jagdish Bhagwati, da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, veio corroborar essa sua opinião dizendo que comércio internacional sem barreiras (que ele defende) e liberdade total nos movimentos de capitais são duas coisas distintas, e que essa 'nuance' é particularmente importante no caso de países em desenvolvimento frágeis... Mas, falando, dos fundamentos do tal modelo asiático. Esses tais 'valores' que o tornariam superior, de que falam os asiatistas, existiram mesmo?

P.K. - Nunca existiu tal coisa. A crise actual prova-o.

Será que o 'capitalismo de amigos', como agora se alcunha, é o lado negro do milagre, responsável por estruturas económicas sem consistência? Os chineses arranjaram uma expressão original para este tipo de relações, a «guanxi». A China será a próxima implosão do modelo?

P.K. - A China é uma confusão, de facto, em muitos aspectos. Mas não tem uma dívida em moeda estrangeira muito grande e não tem convertibilidade, o que a torna menos vulnerável, apesar dos pecados muito reais.

Lee Kuan Yew, o líder reformado de Singapura, que não gostou nada do tal seu artigo na «Foreign Affairs» de há quatro anos, e Milton Friedman, que saíu ultimamente do silêncio, não se cansam de desancar no FMI. Friedman chega mesmo ao ponto de sugerir que é o FMI que é o problema e não a Ásia. E propõe fechar-lhe as portas. O que acha?

P.K. - Não penso que o FMI seja esse papão. As políticas que foram seguidas pelos países em apuros - no campo da defesa da taxa de câmbios com mais altas taxas de juro, e de corte no défice público - eram mais ou menos o que o mercado exigia então. E enquanto a essência das coisas for ter a confiança do mercado, não há alternativa. Penso sinceramente que a algazarra feita pela coligação Friedman/Forbes/Wall Street Journal acusando o FMI de provocar a crise é um puro disparate.

Uma mudança na opinião dominante

Qual foi o principal impacto destes seus artigos mais recentes na revista «Fortune» aconselhando uma política temporária de controlo de capitais nos países asiáticos mais aflitos? Os líderes asiáticos ouviram-no? Ou o FMI?

P.K. - Tanto uns como outros me leram, ainda que não tenham ficado convencidos. Sinceramente, não acho que tenha tido um impacto directo nas políticas. Mas é certo que ajudei ao que se tornou claramente uma mudança na opinião dominante.

E qual foi o sentido da sua Carta Aberta a Mahathir Mohamad, primeiro ministro da Malásia, que parece ter aplicado algumas das suas sugestões?

P.K. - Muita gente percebeu que era uma indicação de que eu não estava envolvido no plano dele. No geral, penso que a minha Carta Aberta publicada na edição da Web da «Fortune» lançou algumas pistas com que muita gente concorda que têm de ser postas em prática. Nomeadamente que o controlo de capitais é uma peça - e só uma -, e ainda por cima temporária, num mosaico de políticas que têm de ser postas em prática.

Qual é a principal diferença entre a sua proposta - de controlo temporário de capitais - e a sugestão de criação dos 'Currency Boards' por parte do especulador filantropo George Soros, por Friedman e pelo argentino Domingo Cavallo, agora tornado colunista e consultor internacional, e candidato a presidente?

P.K. - A ideia de Friedman e Soros é a de fixar a taxa de câmbio tornando os dólares disponíveis livremente para quem queira trocar as moedas locais, com a garantia de que essa taxa não sofreria alterações, independentemente da situação económica. O que essa 'dolorização' significa para quem a aplique é abdicar pura e simplesmente da política macro-económica local, e esperar pelo melhor. O que eu proponho é praticamente o oposto disso - utilizar temporariamente (não mais de três anos, escrevi) os controlos como mal menor para abrir espaço a políticas expansionistas. Os homens que citou querem voltar a algo parecido ao padrão ouro como no século XIX. Eu, por mim, quero regressar apenas a Keynes.

Regressar a Keynes

Isso quer dizer que uma pitada de John Maynard Keynes é a única saída de recurso face ao cenário de crise que pode rebentar no próximo século?

P.K. - Meu caro amigo, Keynes é ainda mais importante agora do que o foi há 50 anos. Coloque isso no seu título. Não sei se os economistas, em geral, se tornarão mais keynesianos de novo, mas digo-lhe que passei a levar muito a sério as questões de tipo keynesiano, se assim se pode dizer. É claro que Lorde Keynes não era uma profeta sagrado. Ele pode ter colocado as perguntas certas, mas cabe-lhe a si, sempre, ter de encontrar as suas próprias respostas.

Ao fim e ao cabo, um pouco de deflação, ou um pouco de inflação, consoante o período, se estrategicamente controlada pelos governos e pelos bancos centrais, é a política certa?

P.K. - Não sei se a deflação será alguma vez uma coisa boa! A inflação, por vezes, ajuda - olhe, se, por exemplo, o Japão tivesse aí uns 5 por cento de inflação neste momento, tudo seria muito mais fácil, certamente. E, em termos mais gerais, eu acho que uma política activa de aprender tendo em conta o ciclo económico é útil para a sociedade.

O que é que quer dizer exactamente com isso, agora?

P.K. - Que, ao contrário do ponto de vista de uma política rígida de oferta da moeda, de orçamento equilibrado a todo o preço e de deixar morrer cegamente 'quem deva morrer' (como se aconselha), o recurso a uma política monetária expansionista à boa maneira antiga, ou mesmo, se necessário, no campo fiscal, em período de recessão, é ainda o caminho a seguir. A verdade essêncial da grande ideia de Keynes de que a economia pode ir abaixo se os consumidores e os investidores gastarem pouco, e que a continuação de uma política de moeda forte e de orçamento equilibrado é, por vezes (não sempre!) uma tolice, é tão evidente hoje como o era nos anos 30.

Mas não acha que Keynes foi enterrado nestes últimos vinte e cinco anos?

P.K. - A desvalorização de Keynes deu-se com o tipo de problemas de natureza 'não-keynesiana' que ocorreram no mundo nos anos 70 e 80 - inflação em vez de deflação, falta de poupança em vez de pouco procura.

Mas a sua solução de controlo de capitais é, no fundo, um analgésico. E se isso se torna uma droga, não será que as políticas proteccionistas - que sempre atacou - voltarão, de novo, à ribalta?

P.K. - É um risco sério, e eu alerto para isso. Nos anos 30, o controlo tornou-se permanente e o comércio mundial foi muito restringido. Eu não defenderia tal situação temporária, se visse outra alternativa. Mas não vejo. Quando as economias colapsam, meu caro, você tem de lidar com a prioridade face à crise e não com hipóteses de longo prazo na política económica.

Mas será que o Japão estará, em breve, de regresso à tríade do poder económico mundial? Qual é a opinião do economista que não acredita em milagres, não do adivinho?

P.K. - Estou muito deprimido com o Japão, digo-lhe sinceramente. Penso que eles têm um problema de fundo, de longo prazo, de discrepância entre uma poupança excessiva e uma procura de investimentos baixa, devido sobretudo à demografia. Só uma expansão monetária realmente radical me parece poder vir a ser um antídoto efectivo, e é difícil acreditar que os japoneses estejam preparados para tal. Contudo, quando eles acertarem com o caminho, a retoma surpreenderá toda a gente!

Rússia: um bando de saqueadores

E a Rússia? Cada vez mais se diz que os herois glorificados pelo Ocidente, como Yeltsin, Chubais e Gaidar, apenas não passam de uma outra etiqueta para o tal capitalismo de amigos...

P.K. - A Rússia é pior do que esse capitalismo de amigos. Eles têm lá é saqueadores. Isto não tem nada a ver com reforma, e nada teve a ver com isso durante muito tempo. A questão magna é se os intrujões em causa conseguem ser convencidos a se tornarem - vamos lá - cleptocratas de longo prazo, em vez de agarrarem na massa e pura e simplesmente fugirem. (risos)

Porque razão as estratégias do FMI, que funcionaram, por exemplo, em Portugal nos anos 80 e no México há três anos atrás, falharam completamente na Ásia e na Rússia?

P.K. - São duas histórias diferentes, a da Ásia e a da Rússia. No primeiro caso, o problema é a combinação de uma crise a pique com a alta dependência das empresas, o que as impede de resistir a uma recessão de tipo mexicano. Na Rússia, o primeiro problema é logo outro - não há sequer uma economia legítima! Quanto ao caso do seu país, ele beneficiou do que eu penso ser um pouco uma visão de um peso-duas medidas. Os mercados perdoam mais a países europeus, acreditando que as dificuldades são sempre passageiras. Quando o Reino Unido ou a Espanha desvalorizam, o mercado diz: "Bom, a coisa acabou" e as taxas de juro caem. Quando se trata do México ou da Coreia, o mercado reage a uma desvalorização dizendo dramaticamente: "Ó, não, são países do terceiro mundo!" e segue-se uma crise de levar as mãos à cabeça.

Nesse novo contexto de crise possível no horizonte, será que o Euro poderá ter sucesso? Ou muitos dos comentários pessimistas de economistas do seu país são, apenas, um desejo americano tipicamente anti-europeu?

P.K. - Os problemas de fundo do Euro nada têm a ver com isso. A principal questão é esta: os países europeus deixarão de ter meios de se ajustarem a choques regionais internos. Tanto quanto eu posso dizer, as únicas razões porque alguns economistas americanos têm sido tão críticos são duas: eles pensam que a Europa vai ter grandes problemas de ajustamento, e que é bom não os encobrir; e, depois, sentem-se um pouco chocados com a ideia de que uma mudança tão grande de política económica, como é o euro, tenha sido tomada por razões de simbolismo político, mais do que por lógica económica.

Alerta à bolha do 'hi-tech'

Outro dos temores é que se venha juntar a esta crise um primeiro estouro da economia digital, sobretudo nos Estados Unidos, o país líder neste campo. Acha que há mesmo uma bolha na capitalização de mercado do «hi-tech» que possa vir a rebentar, apesar de todo o discurso sobre a nova economia emergente?

P.K. - Certamente que os EUA abrandarão. E certamente que temos um problema com uma bolha financeira. Tanto quanto eu posso constatar, as acções americanas estão muito sobreavaliadas em relação a qualquer projecção razoável de rendimentos no longo prazo. Teremos um «crash» em Nova Iorque em 1999? Ou ainda em 1998? Não sei, não sou adivinho. Mas essas justificações sobre a nova economia digital não colam. Em poucas palavras, e de um modo muito crú - não fazem qualquer sentido em termos de teoria económica.

E será que o problema do «bug» informático do ano 2000 ainda poderá juntar mais gasolina ao fogo?

P.K. - Não faço a menor ideia! Não queira assustar mais. Pessoalmente, sabe o que é que eu vou fazer? Vou levantar umas massas, fazer cópias de todos os meus ficheiros, e esperar pelo melhor. (risos)

UMA MINI-'REPRISE' DOS ANOS 30
Paul Krugman abana a nossa amnésia colectiva
Entrevista à «Strategy & Business»

«Vamos assistir na Ásia a uma mini-'reprise' do filme dos anos 30», afirma Paul Krugman à revista «Strategy & Business» (na sua edição do último trimestre de 1998, Fourth Quarter, Issue 13).
Respondendo a Joel Kurtzman, editor-em-chefe desta revista publicada trimestralmente pela Booz-Allen & Hamilton, o professor de Economia da Sloan School of Management do Massachusetts Institute of Technology sublinha que «o que está a acontecer na Ásia é algo que John Maynard Keynes reconheceria se fosse vivo».
Particularmente no Japão assistimos a uma depressão típica à moda dos anos 30. O problema é que os líderes políticos não estão a reconhecer esta situação: «Os líderes japoneses não estão a conseguir persuadir os seus homens de negócio e os consumidores a gastar mais dos seus rendimentos - e este é o problema central. Os expedientes tradicionais que se usam nestas circunstâncias não deram resultados até agora. Os japoneses tentaram as obras públicas, mas não resultou. Cortaram as taxas de juro praticamente até zero, e também não resultou. Esta é uma situação a que não assístiamos desde os anos 30. Os Estados Unidos tiveram uma série de recessões desde a Segunda Guerra Mundial, mas todas elas responderam muito rapidamente logo que se carregou nos botões de emergência habituais. O problema dos japoneses é que não compreendem o que está a suceder. E como não o entendem, as políticas que lançam são ineficazes».
Krugman constata que esta amnésia intelectual é mais geral - estamos quase todos adormecidos com a bebedeira do crescimento dos últimos anos a ponto de nos termos «esquecido do que é uma economia depressiva». Para nos refrescar a memória, o economista do MIT recorda o início do século. «A marca de água parece ter sido o ano de 1913 - nada toldava os mercados globais a não ser os submarinos. Houve um grande salto em frente para reconstruir esses mercados nos anos 20. Mas depois vieram os anos 30. Face à crise, muitos países simplesmente quebraram as regras - e fizeram bem. Foram os que furaram as regras estabelecidas que se safaram melhor. Por exemplo, a Grã-Bretanha, que soube abandonar o padrão-ouro, teve uma recessão mais moderada do que os Estados Unidos. Penso que agora poderá suceder o mesmo. Os asiáticos já o começaram a fazer. Não me surpreenderia nada se daqui a uns anos olhássemos para o ano de 1997 e o vissemos como a marca de água desta economia globalizada, da mesma forma que hoje encaramos 1913».


AS LEITURAS RECOMENDADAS POR PAUL KRUGMAN:

Fortune nº 17 de 98/09/07A LER AINDA:

OS OUTROS CONVIDADOS PARA O DEBATE DA CRISE
Domingo Cavallo | Jagdish Bhagwati

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